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‘Melhor normal’: a Academia na construção de novos paradigmas econômicos, sociais e ambientais
Defendido por um dos membros da Rede de Professores do Programa Academia ICE na região Nordeste, o conceito fala da priorização dos impactos sociais e ambientais e de uma economia a serviço da vida, e não o contrário. Confira entrevista exclusiva em que ele dialoga com professora da PUC-RS, também membro da Rede.
“Muitos falam de um ‘novo normal’, restringindo as possibilidades apenas à adaptação às imposições físicas a que essa nova situação nos compele. O que talvez não estejamos percebendo é que não teremos um ‘normal’, nem tampouco um ‘novo normal’, se mantivermos a mesma mentalidade que antecedeu a pandemia. Teremos sim um ‘novo anormal’.”
A reflexão é de autoria de Márcio Waked, professor e pró-reitor administrativo da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), e abre seu artigo publicado pelo Jornal do Commercio de Pernambuco.
Membro do Conselho do Programa Academia ICE, Márcio é também um empreendedor social. Quando ingressou na UNICAP, em 2007, o professor já trazia na bagagem a temática da inovação social e dos negócios de impacto. Desde então, participou de diversas iniciativas e projetos que contribuíram para o desenvolvimento do tema naquela comunidade acadêmica, a exemplo da construção do Laboratório de Inovação, Criatividade e Empreendedorismo da UNICAP (LICEU), em parceria com outras instituições locais e internacionais e da participação da UNICAP no Ashoka Commons, inclusive contribuindo com a viabilização de uma edição brasileira do programa da Ashoka U, cujo objetivo é conectar e preparar grupos de acadêmicos e funcionários de instituições de ensino superior para fortalecer o desenvolvimento da formação de agentes de mudança e da educação para a inovação social.
Em entrevista ao Boletim ICE, Márcio falou um pouco mais sobre o conceito de ‘melhor normal’, elaborado por ele para qualificar o debate em torno dos desafios aprofundados ou descortinados pela chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil. Entre os passos que ele considera fundamentais para a jornada de construção desse ‘melhor normal’ estão a colaboração e a disseminação de conceitos e a construção de modelos de desenvolvimento que não prescindam dos aspectos sociais e ambientais.
Para dialogar com o acadêmico, convidamos Maira Petrini, professora e pesquisadora do programa de Pós-Graduação em Administração, da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Assim como Márcio, a docente, que lidera o grupo de pesquisa Sustentabilidade e Negócios de Impacto Social, também integra a Rede de Professores do Programa Academia ICE e fala sobre as perspectivas de atuação da Rede em diálogo com o conceito de ‘melhor normal’.
Confira o bate-papo na íntegra.
Boletim ICE: Márcio, o conceito de ‘melhor normal’ inspirou o tema do Encontro Nacional Academia ICE deste ano. Que ideias estão por trás desse conceito?
Márcio: Muito tem se falado em ‘novo normal’, porém adaptado a imposições físicas ou tecnológicas a que a situação atual nos compele. O que talvez não estejamos percebendo é que não teremos um ‘normal’, nem tampouco um ‘novo normal’, se mantivermos a mesma mentalidade que antecedeu a pandemia. Teremos sim um ‘novo anormal’, já que antes da Covid-19, nosso ‘normal’ já era anormal, injusto e desigual. Testemunhamos a face mais devastadora das desigualdades, da corrupção e da pobreza. Precisamos colocar a questão em perspectiva para analisar de forma adequada e coerente, bem como buscar as soluções apropriadas, evitando o equívoco de considerar apenas a variável Covid-19. Se já estivéssemos livres dos problemas complexos que vivenciamos em nossa sociedade, que permeiam as áreas da saúde, educação, segurança, moradia, mobilidade, emprego e renda, alicerçados na pobreza, injustiça social e desigualdades, certamente seria tranquilo falar em ‘novo normal’. Não podemos aceitar que esse ‘novo normal’ esteja decidido ou que decidam sobre ele segundo as práticas, interesses e o mindset do ‘velho normal’. A ideia por trás desse conceito, que não é novo, é que um ‘melhor normal’ é possível. Em meio a tantas dificuldades, aprendemos que somos capazes de quebrar paradigmas, de ser solidários e de cuidar dos que mais precisam. Fizemos coisas que jamais imaginávamos sermos capazes de fazer em tão pouco tempo. Já passou da hora de pivotarmos o nosso mindset. No âmbito da Rede Academia ICE, fazemos parte de um ecossistema que reúne movimentos e iniciativas que colaboram para um ‘melhor normal’, fundamentados na inovação social, que vai ao encontro das soluções dos problemas complexos atuais e que apontam para novas economias e novos modelos de negócios, suportados por novos modelos de liderança regenerativa, mais empática, colaborativa e sustentável, por líderes altruístas e solidários. Estamos diante de um ponto de inflexão, de uma retomada em V e de um marco histórico de destruição criativa e reconstrução da vida e das relações em todas as suas dimensões. Emerge o novo modelo mental do cuidado.
Boletim ICE: Maira, como você percebe essas ideias do professor sobre o conceito de ‘melhor normal’?
Maira: Concordo que a pandemia somente descortinou nossos altos níveis de desigualdade e pobreza. Um estudo da Edelman Trust Barometer realizado em 28 países, com 34 mil pessoas, em janeiro, antes da pandemia, mostra que 56% concordaram que o capitalismo como existe hoje faz mais mal do que bem ao mundo. Ou seja, já nos questionávamos sobre esse modelo. Quando olhamos para os efeitos da pandemia nos níveis econômico, social e ambiental vemos a pior recessão desde 1930 com queda de mais de 6% em economias desenvolvidas, nessas mesmas economias, vemos os índices de desigualdades mais profundos dos últimos 50 anos e projeção de aumentarmos a temperatura da terra em mais de 1,5 graus nos próximos cinco anos, o que pode nos levar a mudanças climáticas catastróficas. Ou seja, um ‘novo normal’ pode incorrer em um retorno ‘repaginado’, mas pautado nessa economia capitalista disfuncional, como bem pontua o Márcio.
Boletim ICE: Como vocês têm adotado esse conceito no dia a dia a fim de contribuir com a construção do ‘melhor normal’ nas suas comunidades acadêmicas?
Márcio: Entendemos que esse processo se inicia com a disseminação do conceito e vai engajando toda a comunidade acadêmica. Por meio da parceria com o Programa Academia ICE, avançamos em diversas iniciativas, alinhadas à missão da UNICAP – como instituição comunitária e Jesuíta – e fundamentadas na inovação social, que, junto com o tema dos negócios de impacto socioambiental, já é uma realidade, tanto na Graduação, quanto na Pós-Graduação, bem como na área de Extensão e Pesquisa, que, este ano, iniciará uma linha específica de inovação social com a participação de professores de diversas áreas e cursos.
Maira: Na PUC-RS, vamos pelo mesmo caminho. Temos uma frente de pesquisa bastante consolidada no tema da sustentabilidade e dos negócios de impacto. No âmbito da Rede Academia ICE, este ano, teremos as jornadas de pesquisa e nós estamos propondo o tema “Economias para resiliência” com o intuito de construir um projeto a muitas mãos justamente para estudar os diferentes modelos de economia que há algum tempo têm sido debatidos, como a economia criativa, verde, circular, entre tanto outros. O tema dos negócios de impacto é um caminho de observação dentro dessa discussão mais conceitual acerca de um modelo econômico que dialogue de fato com o conceito de ‘melhor normal’. Por seu caráter confessional e comunitário, a PUC possui uma área de extensão que conversa com os valores do impacto social. Dentro do parque tecnológico, o Tecnopuc, por exemplo, existe um hub de negócios de impacto. Como programa de pesquisa, nossa aproximação com a extensão ainda é tímida, mas também já começamos a desenvolver essa discussão na perspectiva da pesquisa de modelos econômicos voltados à resiliência, que acreditamos ser um caminho para esse ‘melhor normal’.
Boletim ICE: O assunto também foi tema de uma das atividades da programação do Encontro Nacional 2020 Academia ICE, que reuniu outros professores da Rede Academia ICE. Que insights, ideais ou inspirações essa sessão deixou?
Márcio: As reflexões foram muito ricas e apontaram para a importância do papel das Instituições de Ensino Superior no protagonismo dessa mudança de mindset, bem como na realização de atividades de ensino, pesquisa e extensão na temática de inovação social e negócios de impacto como estratégia fundamental. O Encontro Nacional certamente foi um marco no reposicionamento e fortalecimento da Academia no sentido de um processo disruptivo, colaborativo e inovador que vem crescendo ano a ano.
Boletim ICE: Na sua avaliação, que perspectivas o conceito pode criar para a atuação futura da Rede?
Maira: Existem alguns pontos fundamentais para avançarmos nessa agenda. Um deles diz respeito à colaboração, que não é um assunto novo. Em 2009, Elinor Ostrom, a primeira mulher a receber o prêmio Nobel de Ciências Econômicas, partilhou o troféu com o economista Oliver Williamson pela análise da governança econômica, especialmente dos bens comuns. A cientista política se especializou em buscar exemplos e analisar pequenas sociedades que, em vez de competirem entre si pelos mesmos recursos naturais em extinção, aprenderam a cooperar para sobreviver. O que ela traz é uma crítica à Teoria da Tragédia do Bem Comum, pela qual o ser humano está fadado ao conflito por causa da escassez. No entanto, seu trabalho comprova que, em muitos casos, as sociedades são capazes de prosperar por meio de alternativas para resolver conflitos de interesse, respeitando o semelhante, garantindo a sustentabilidade ambiental, sem, necessariamente, depender do governo ou de outras autoridades. O papel dos governos é sim, fundamental, do ponto de vista das políticas públicas. E uma perspectiva de trabalho para a Rede Academia pode estar atrelada a articular essa colaboração entre Academia, políticas públicas e empresas na perspectiva de alcançarmos um ‘melhor normal’ onde as sociedades terão a possibilidade de prosperar de maneira também colaborativa.
Boletim ICE: Márcio, como você avalia o papel e o potencial da colaboração na implementação de um ‘melhor normal’ e como você tem atuado nesse sentido na UNICAP e fora dela?
Márcio: Os desafios não são poucos, nem pequenos e nem simples. Não temos escolha. Ou fazemos juntos, em rede e em colaboração, ou não conseguiremos. A Rede do Programa Academia ICE tem se mostrado um dos principais caminhos para alavancar a disseminação e a prática desses novos modelos entre as IES das diversas regiões do Brasil. A partir dessas ações, a UNICAP tem protagonizado importantes iniciativas, muitas vezes, contrapondo-se à ausência de políticas públicas, atuando a partir de uma formação responsável e humanista, promovendo não apenas a consciência da realidade em que vivemos, mas sobretudo propondo e realizando iniciativas que colaboram significativamente para a construção desse ‘melhor normal’. É a Academia se reinventando e produzindo resultados positivos para a sociedade, inclusive pela formação de lideranças mais éticas e sustentáveis.
Boletim ICE: Que recomendações vocês dariam aos atores do ecossistema de investimentos e negócios de impacto (investidores, organizações intermediárias e negócios de impacto social e ambiental) para a adoção do conceito em suas atuações?
Maira: Temos que estabelecer agendas concretas o bastante para garantir que a colaboração seja o fio condutor da atuação de todos esses atores.
Márcio: Se compararmos a situação do país há 15 anos com a atual, perceberemos o quanto o ecossistema de investimentos e negócios de impacto tem crescido e avançado. É inevitável. Não participar desse ecossistema seria um grande erro. Da mesma forma que não olhar para a Academia, de onde nascem grandes empreendimentos e empreendedores sociais, por meio do ensino, da pesquisa e da extensão. Portanto, minha recomendação é para que os olhares e investimentos estejam cada vez mais focados nesse espaço para a formação de novos empreendedores e líderes preparados para atuar de forma significativa na construção do ‘melhor normal’.