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Alguns mitos impedem a convergência entre investimentos e impacto, afirma Marina Cançado
O ICE conversou com a fundadora da Converge Capital e uma das vozes mais proeminentes do movimento por um maior engajamento de grandes investidores e famílias de alta renda em investimentos de impacto.
“A cada momento temos diante de nós diferentes cenários de futuro, os quais podemos influenciar por meio das nossas ações, incluindo os investimentos financeiros que fazemos.”
A reflexão é de Marina Cançado, fundadora da Converge Capital, e dialoga com a recomendação da Aliança pelo Impacto e os esforços do ICE para que famílias de alta renda movam de 1 a 3% do seu capital para investimentos de impacto.
Herdeira do grupo de farmácias Drogal, do interior de São Paulo, Marina esteve à frente da realização da Converge Capital Conference 2020, realizada no Rio de Janeiro (RJ) no mês de fevereiro. O evento reuniu representantes de fundos e outros atores-chave do mercado financeiro, famílias de alta renda e de empresas que são referências em sustentabilidade. As palestras e discussões trataram de como os investimentos privados podem estar orientados à construção de uma sociedade mais justa para as próximas gerações.
A empresária, que também lidera a Agenda Brasil do Futuro – grupo que reúne jovens de famílias empresárias para financiar projetos considerados estratégicos para o futuro do país – conversou com o ICE sobre sua visão acerca do futuro dos investimentos de impacto. Confira a entrevista a seguir.
Boletim ICE: Você é uma voz no movimento que defende maior engajamento de grandes investidores e de famílias de alta renda. Em sua opinião, quais são os maiores desafios para o engajamento desses atores e a convergência do mercado financeiro com investimentos de impacto?
Marina Cançado: O primeiro é desconstruir alguns mitos que acabaram moldando a cabeça do investidor brasileiro em relação a investimento de impacto.
Um dos principais é que investimentos de impacto pressupõem retorno menor. A meu ver, esse mito é uma distorção do fato de que alguns investidores, para resolver determinado problema social, estão dispostos a ter um retorno menor. Porém, não é porque alguns investidores, em alguns casos, têm uma abordagem concessionária que os investimentos de impacto necessariamente geram retornos menores. Pelo contrário, as pesquisas globais mostram que em mais de 80% dos casos eles alcançam ou superam as expectativas financeiras. No mundo das finanças sustentáveis, não dá para analisar o retorno financeiro sem conhecer a motivação do investidor e o que ele busca em termos de retorno.
Outro mito é o de que investimentos de impacto são mais arriscados. O fato de os investimentos de impacto, no Brasil, se concentrarem em negócios de impacto e startups em estágio inicial contribuiu para a falsa impressão de que esses investimentos são mais arriscados. O risco não vem do impacto, mas sim do estágio de vida da empresa. Provavelmente, eles são equivalentes ao risco de empresas e startups convencionais que estão no mesmo estágio. O investidor brasileiro ainda está aprendendo e se acostumando a atuar como anjo ou a lidar com venture capital.
Um terceiro mito é que investimentos de impacto são sempre feitos em negócios de impacto ou startups que estão buscando resolver algum desafio do mundo, e, por isso acabam sendo uma parcela pequena dos investimentos de um indivíduo e/ou família. Esse mito é muito característico do Brasil e na América Latina, e, na minha visão, é um dos maiores impeditivos para que o mercado financeiro passe a enxergar o potencial dos investimentos que buscam impacto positivo para além de retorno financeiro. A experiência internacional mostra que em todas as classes de ativo (imobiliário, ativos reais, private equity, ações, renda fixa, etc.) é possível fazer investimentos de impacto, ou seja, com intencionalidade clara e mensuração dos impactos adicionais ao retorno financeiro. Enquanto os investidores brasileiros se apegarem a uma classe de ativo específica e não expandirem seu olhar para o impacto possível dentro da lógica de um portfólio, será muito difícil avançarmos e redirecionarmos o capital privado para os temas e soluções-chave para as próximas décadas.
Que outros desafios você identifica que atrapalham a convergência entre investimentos e impacto?
O segundo desafio é que, no Brasil, temos pouquíssimos profissionais nos family offices, multi family offices, private banking e entre os advisors com formação e repertório para ajudarem a família ou o indivíduo investidor a refletir sobre o papel do seu capital na construção do futuro, a alinhar seu portfólio com seus valores e causas e a adotar métodos que levem à definição de uma política e estratégia de alocação adequada às motivações da família ou pessoa. Nos bancos, nas gestoras e nos fundos também faltam profissionais preparados para fazer análises de investimentos muito mais holísticas e sistêmicas, o que é essencial para mapear e mensurar riscos e retornos ambientais, climáticos e sociais.
O terceiro desafio é a falta de produtos pensados para as várias classes de ativo. Para os investimentos off-shore não há desculpas. Há grande qualidade e variedade para diversas temáticas em diferentes classes de ativo. Mas, para os investimentos no Brasil, temos muito o que evoluir no desenvolvimento de novos produtos. Para isso, precisamos de famílias dispostas a ancorar e investir em novos produtos e de novos atores (fundos, gestoras, plataformas) que os desenhem e os tirem do papel.
Como esses desafios podem ser superados e que atores devem se envolver nessa missão?
Vejo que os espaços de ampliação de repertório e os exemplos são fundamentais, tanto para famílias investidoras, como para suas equipes e para os profissionais do mercado financeiro. Por isso eu organizei a Converge Capital Conference. Além da sensibilização e educação, no mundo, grandes mudanças estão vindo da pressão dos investidores institucionais, que passam a exigir dos fundos e gestoras, no mínimo, os critérios ESG, e, das empresas, a adoção de uma série de práticas voltadas ao meio ambiente e clima. E, também, da voz coletiva de famílias. No The Impact, por exemplo, estamos usando a força dos membros para influenciar transformações nos wealth managers e nos grandes bancos. O que falta no Brasil são as famílias ativamente cobrando seus advisors, equipes e gestores novos métodos e alternativas para terem portfólios mais alinhados com seus valores e com o futuro que querem nutrir. Em resumo, para superarmos os desafios no Brasil, sem dúvida precisamos da pressão dos asset owners demandando e exigindo novas respostas do mercado financeiro e dos seus profissionais.
Como você avalia a experiência do FORImpact – Family Offices de Impacto, grupo criado pelo ICE e Impactix, que reúne 12 famílias e seus family offices numa jornada de aprendizado com co-investimento direto em negócios de impacto? Conhece outras iniciativas semelhantes?
As experiências que mais me transformaram foram as que tinham o componente “mão na massa”, “aprender fazendo”, então, minha visão é que o FORImpact, como espaço de sensibilização, aprendizado e experimentação é maravilhoso. A iniciativa mais próxima disso que conheço é a de um fundo formado recentemente pela Pymwymic, a primeira rede de investidores de impacto da Europa, que juntou seus associados em um veículo único para a realização de investimentos conjuntos. Na Pymwymic, tudo que eles fazem é bastante dialogado, com muita troca de aprendizado e busca de consenso, por isso também a semelhança. As outras redes que eu conheço, como a Toniic e o The ImPact, têm ferramentas que permitem aos membros visualizarem de forma anônima os portfólios uns dos outros, a fim de terem ideias de como avançar no seu próprio portfólio. No entanto, não há essa coordenação para que os membros invistam conjuntamente e aprendam com o processo.
Na sua avaliação, há limites ou desafios a serem superados na forma de investimento direto, comumente mais adotada?
É normal que um indivíduo ou família, quando se apaixona pelo universo de investimento de impacto ou quando quer usar seu capital para gerar um impacto muito específico, queira fazer o investimento direto, envolver-se com o negócio, estar perto, fazer parte do conselho, etc. O que eu tenho visto no The Impact, rede da qual faço parte com pessoas que já estão na jornada há mais tempo, é que os investimentos diretos tendem a diminuir conforme você avança na sua jornada de impacto, aumenta o volume de recursos destinados para impacto e passa a pensar o portfólio como um todo. Isso porque investimentos diretos demandam muito da pessoa/família/family office e, em alguns casos, podem trazer responsabilidades e riscos diretos. O que eu tenho percebido é que aqueles que mantiveram os investimentos diretos criaram ou aumentaram a estrutura do seu family Office e trouxeram um profissional com muita competência em investimentos de impacto para cuidar dos investimentos diretos.
Um dos cuidados que eu teria em relação à tradução da experiência do FORImpact para as famílias e family offices seria deixar claro para os participantes o volume de trabalho e os custos da prospecção, due diligence, acompanhamento dos empreendedores, etc. Isso porque, caso eles queiram levar a prática para suas famílias e family offices, é importante ter clareza de quanto os investimentos diretos demandam em termos de estrutura e recursos necessários para fazê-los da forma adequada. Também considero importante frisar que o investimento direto em um negócio em estágio inicial é um caminho, mas há muitas abordagens de impacto ou sustentáveis dentro de um portfólio. Eu temo que, se a única forma de fazer investimento de impacto visualizada pelas famílias seja via investimento direto em negócios em estágio inicial, as pessoas saiam com a sensação de que investir com impacto é arriscado, custoso e demandante e isso dificulte o avanço desse mercado no Brasil. Por isso, ressalto que investimento direto em negócios de impacto em estágios iniciais é um caminho, mas existem muitos outros – ainda mais quando o investidor se abre para investigar o que é possível em cada classe de ativo – e penso que é importante trazer essa perspectiva durante o processo de aprendizado e reflexão do grupo.
Destaque os três principais aprendizados gerados pela Converge Capital Conference.
O primeiro é que o futuro não está dado, e, por isso, onde investimos, onde colocamos nosso capital, importa muito. A cada momento temos diante de nós diferentes cenários de futuro, os quais podemos influenciar por meio das nossas ações, incluindo os investimentos financeiros que fazemos. Investir com o propósito de gerar impacto positivo no mundo precisa ter como ponto de partida a investigação dos cenários possíveis para um tema, um setor, uma causa, e, a clareza do que seria o futuro desejável ou preferido. Só assim, conseguiremos expandir as limitações impostas por nossa mente e direcionar os investimentos de forma estratégica para aumentar as possibilidades de o nosso cenário futuro preferido acontecer.
Outro aprendizado é que o mercado de finanças sustentáveis que engloba os investimentos ESG e de impacto não é uma moda, ele veio para ficar. Segundo a Global Sustainable Investments Alliance, os investimentos sustentáveis já correspondem a mais de 30% do mercado financeiro global, e, em dez, 20 anos, serão o mainstream, ou seja, substituirão o que hoje entendemos por investimentos tradicionais ou convencionais. Isso porque, globalmente, está se percebendo que a compreensão e a integração dos impactos sociais e ambientais de um negócio ou ativo na tomada de decisão de investimentos é fundamental, de um lado, para que se possa mapear seus riscos e precificá-lo adequadamente, e de outro, para que se possa vislumbrar o retorno financeiro diante de possibilidades de futuro mais incertas e complexas. Nesse contexto, é importante ressaltar que investimentos que consideram o retorno social e ambiental não são uma classe de ativo à parte, como já foram considerados. Conforme as dimensões sociais e ambientais vão se tornando cada vez mais transversais a qualquer análise de investimento, em qualquer classe de ativo, começamos a observar o surgimento de portfólios que têm toda a sua estratégia pautada em investimentos orientados a um futuro sustentável. Em cada um dos países ou regiões que lideram o movimento de investimentos sustentáveis houve um segmento que tomou a liderança e deu os primeiros passos para que esse mercado passasse a existir. Na Europa, foram majoritariamente os fundos de pensão. Na Ásia, os governos e empresas. Nos Estados Unidos, as fundações e family offices. No Brasil, para que o mercado de investimentos sustentáveis e de impacto passe a existir de fato, precisamos das famílias com grande patrimônio ancorando e demandando novos produtos dos atores do mercado financeiro.
Há encaminhamentos ou próximos passos resultantes do evento? Se sim, quais?
O plano consiste em estabelecer uma periodicidade anual para o evento. A segunda edição está prevista para o início de 2021. Além disso, queremos apoiar as famílias, indivíduos ou atores do mercado financeiro que querem repensar seus portfólios e produtos, a fim de orientá-los à construção de um futuro sustentável, além de gerar conteúdo para ajudar na ampliação de referências e no aprofundamento das conversas iniciadas na conferência.
A Converge Capital Conference conectou ESG e investimento de impacto trazendo um conteúdo rico em temas ambientais relacionados a mudanças climáticas e ao agronegócio. Como chegaram a esse recorte?
Nessa primeira edição da conferência, eu quis trazer para o Brasil os principais debates que estão dando o tom das transformações em curso no mercado financeiro, aos quais eu tive acesso durante minhas viagens. No Brasil e em outros países emergentes, os temas da desigualdade social e pobreza são muito mais presentes nas discussões e nas iniciativas do que as questões climáticas e ambientais. No norte da Europa, região que lidera o movimento de transformação do mercado financeiro, o grande debate é a questão ambiental e as adaptações necessárias diante dos cenários de mudanças climáticas. Os gestores de investimentos e as empresas brasileiras já estão sentindo na pele a pressão dos investidores estrangeiros em relação aos disclosures relacionados a riscos climáticos, à transição para baixo carbono ou carbono neutro, às metas do Acordo de Paris, etc. A cobrança desses investidores têm se traduzido em mudanças concretas em práticas internas, linhas de negócio e nas cadeias de valor por parte das empresas, e, em realocações de investimento por parte dos gestores. Como o Brasil é um grande produtor agropecuário, grande parte da pressão dos investidores estrangeiros está indo para esse setor.
Para além de mostrar como a pauta climática foi integrada nas decisões de investimento estrangeiras, focamos no tema Florestas e Amazônia por entender que o Brasil precisa encontrar formas de gerar valor econômico de forma sustentável a partir dos seus ativos naturais. Não tem outro caminho para o Brasil ser competitivo nessas próximas décadas – inclusive porque a destruição desses ativos não será mais tolerada. Se soubermos integrar tecnologia, inteligência e investimentos estrangeiros para a criação de um modelo de desenvolvimento sustentável a partir das florestas, poderemos dar um salto como país e contribuir de forma relevante para o mundo.
Qual é sua percepção sobre o espaço para temas como educação e saúde no diálogo com fundos e empresas?
Em geral, o mercado financeiro trabalha com teses de investimento. Educação e saúde sempre aparecem como setores com muitas ineficiências e desafios, e, portanto, muitas oportunidades de alto impacto. A partir do que eu tenho visto, conversado e conhecido mundo afora, não é uma questão de preferência temática, mas sim o desafio de encontrar bons empreendedores e bons negócios. Desafio que é ainda maior quando falamos de empresas em estágio inicial ou em estágios anteriores à escala, adicionado da busca pela intencionalidade e mensuração clara dos impactos para a sociedade. Na minha opinião, a dificuldade de trazer investidores para negócios de impacto early-stage é menos pelo desconhecimento do campo de investimentos de impacto e mais pelo fato dos investidores brasileiros ainda estarem aprendendo e se acostumando a serem investidores anjo ou a lidar com venture capital e pela dificuldade natural de se encontrar negócios promissores nesse estágio – o que ocorre no mercado tradicional e aumenta quando se coloca a intencionalidade e a mensuração dos outros impactos.