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Graziella Comini estuda relação entre modelos de negócios sociais, inovações e a geração de valor socioambiental
Preocupada com um conjunto de indicadores que apontam a existência de grande desigualdade socioeconômica e degradação ambiental no mundo, e pela constatação de que o capitalismo ainda não conseguiu dar conta de resolver esses problemas, a professora Graziella Maria Comini, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEAUSP), escolheu para sua tese de livre-docência o tema “Negócios Sociais e Inovação Social: um retrato das experiências brasileiras”.
Graziella Comini é a atual coordenadora da graduação em Administração da FEA e do Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da USP, além de integrar o Programa Academia do ICE e a Rede NIFS (Rede de Professores em Negócios de Impacto e Finanças Sociais).
A tese utilizou dados de pesquisa realizada pelo projeto “Brasil 27”, coordenado pela autora, que mapeou durante um ano empreendimentos sociais no Brasil, com apoio financeiro da Fundación Avina, Fundação Rockefeller, Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e Omidyar Network.
“A gente conseguiu formar uma base de 1.100 empreendimentos, dos quais selecionamos 27 casos, um de cada estado brasileiro. Era importante ter um de cada estado, em razão da concentração no eixo Rio-São Paulo. Foi por isso que o projeto se chamou Brasil 27”, diz a pesquisadora. Ela analisou a literatura acadêmica e dados levantados nos 27 empreendimentos para elaborar sua tese.
Leia a íntegra da entrevista sobre a tese dada ao ICE Notícias pela professora Graziella Comini, considerada uma das principais estudiosas do empreendedorismo social no Brasil.
P. – Por que você escolheu esse tema para sua tese de livre docência?
GC – Existem diferentes elementos, fatores e indicadores que despertam preocupação com a forma de condução dos negócios, entre eles indicadores que apontam para uma grande desigualdade socioeconômica e degradação ambiental. O capitalismo ainda não conseguiu dar conta de resolver essas questões. Desde a revolução industrial, o grande motor para viabilizar o desenvolvimento econômico foi dar ênfase às grandes corporações. E aí a gente começa a se questionar se elas, embora trazendo diversas inovações, foram capazes de distribuir essas inovações de maneira mais igualitária. Surge, portanto, um repensar e um questionamento sobre qual deveria ser, de fato, o papel do Estado frente a essa situação e outros atores começam a ficar preponderantes, como as organizações da sociedade civil e as pequenas e médias empresas.
P. – Como esse repensar aparece na literatura acadêmica?
GC – Se pontuarmos aqui uma cronologia, os diversos temas e debates que vão surgindo no mundo do business internacionalmente, temos algumas temáticas que ficam bastante evidentes a partir do século XXI: empreendedorismo social, empresas sociais, cadeias híbridas, mercados inclusivos, negócios inclusivos, ou seja, isso está no centro do debate atual. A literatura acadêmica sobre a temática de empreendedorismo social e negócios inclusivos mostra um aumento exponencial do número de artigos.
Esse é um tema que não só a mim encanta, mas muitos autores estão preocupados e questionando novos formatos para viabilizar negócios.
P. – Qual o objetivo de sua tese?
GC – O que está por trás dessa questão chave é até que ponto esses negócios sociais, no sentido de viabilizar a geração de valor econômico e valor social por meio da lógica de mercado, de fato estão contribuindo para a promoção do desenvolvimento sustentável, até porque as organizações tradicionais a gente já percebe que não deram conta. São situações que a gente tem no Brasil, na África e em muitos outros países, que enfrentam problemas sérios crônicos. Então, será que outros formatos de organizações não poderiam contribuir?
Para isso eu elenquei alguns objetivos específicos. Primeiro, desenvolver uma classificação que consiga identificar e mapear as especificidades dos negócios sociais, definir categorias temáticas que permitam mapear o que é gerar valor socioambiental. Depois, tentar fazer uma ponte entre o que é discutido em administração, dentro da corrente de ciências sociais que foca a questão da inovação social, e estabelecer as diferenças entre geração de valor socioambiental e inovação social, porque dentro da discussão de empreendedorismo social gerar valor social era sinônimo de inovação social. Será que isso é uma verdade?
Esse era um aspecto importante a ser discutido nesse trabalho. Identificar características e padrões e formular hipóteses que poderiam ser testadas em trabalhos quantitativos sobre inovação social e negócios sociais. Para isso, dentro de um referencial teórico e para poder apresentar alguns dados, estruturei um quadro analítico em três vertentes.
Primeiro, eu deveria classificar os empreendimentos sociais; em seguida, definir com mais clareza o que é valor socioambiental e depois fazer uma análise da inovação social. Alguns conceitos são importantes aqui. Empreendimento social é qualquer tipo de organização ou ação que gere impacto social produzindo uma transformação social. Aqui a gente não está vinculando a nenhuma questão jurídica. Negócios de impacto social estão justamente vinculados a uma lógica de mercado, enquanto empreendimentos sociais podem ser organizações sem fins lucrativos para se diferenciar das organizações tradicionais.
P. – Quais as diferenças de abordagem teórica existentes na Europa, Estados Unidos e Ásia?
GC – A gente percebe que geograficamente há uma diferença na definição de empresa social. Existe uma abordagem europeia que tem uma preocupação maior com a questão da governança e da coletividade. A origem dessa abordagem, na Europa, está ligada ao debate sobre economia social. Ou seja, lá você tem um Estado provedor, mas a sociedade civil começa a questionar se de alguma maneira não pode oferecer esse tipo de serviço. Você tem uma complementação a serviços públicos e começam a surgir formatos em cooperativas. Na Europa existe regulamentação. A maioria dos países possui uma lei que regula o que é social enterprise.
Já numa perspectiva norte-americana o termo preponderante é muito mais negócio social, mas com uma diversidade de formatos e de possibilidades. Pode ser, por exemplo, uma grande corporação atuando na base da pirâmide, encarada como um novo mercado. Então você tem lá, dentro de uma lógica americana, a grande corporação atuando para uma população de baixa renda que foi negligenciada e, ao mesmo tempo, organizações da sociedade civil com limitações de recursos que começam ver também uma alternativa de geração de renda a atuação numa lógica de mercado. Então esse muro que separa empresas e ONGs começa a ser derrubado. Lá nos Estados Unidos você tem diferentes formatos e você já tem dois formatos jurídicos que conseguem classificar esse tipo de organização, que é, Low profit limited liability company, que já está presente em dez estados e a benefit corporation, com um crescimento exponencial em vários estados.
No caso de países em desenvolvimento há uma multiplicidade de conceitos. São muitos formatos, várias terminologias. No início o termo preponderante era negócio inclusivo. Hoje você já tem mais negócios de impacto, negócios com impacto. Enfim, não se usa uma terminologia única. A gente tem aqui, no caso dos países em desenvolvimento, uma grande referência, que é o Yunus. A terminologia social business foi primeiramente utilizada por ele num sentido muito específico: ele acredita nos negócios de mercado, desde que o lucro seja incorporado na organização. Essa é uma visão muito especifica do Yunus e você tem aqui na América Latina alguns tipos de empreendimento que acreditam nesse princípio ideológico do Yunus, enquanto outros consideram que não haverá nenhum tipo de problema se os lucros forem distribuídos. Isso é particularmente importante porque há uma indústria paralela que começa a ficar cada vez mais forte que é a do investimento de impacto, o que só tem sentido se houver investidor e acionista. Essas visões diferentes convivem no Brasil, mas nos países asiáticos há um predomínio da não distribuição de lucros.
P. – Qual a razão dessas diferentes abordagens?
GC – Como não há consenso sobre o que é exatamente uma empresa social, você tem algumas lentes para diferenciar. No meu trabalho, ao longo dessa minha trajetória nessa temática, fui buscando alguns fatores que pudessem diferenciar e considero que existem blocos particularmente importantes no referencial teórico. Você tem, primeiro, uma diferença de abordagem em termos de finalidade na forma como você lida com a cadeia de valor, como você incorpora os princípios de governança e o olhar de sustentabilidade financeira. Então, você pode ter organizações com mais preponderância em lógica de mercado e outras com uma musculatura mais forte em termos de lógica social. Todas atuam no mercado. Olhando essa classificação criei uma tabela que foi particularmente importante para eu poder mapear e diferenciar alguns empreendimentos e levantar algumas hipóteses. Por meio de uma variável binária eu pude ver se o empreendimento nasce para aproveitar uma oportunidade de mercado ou resolver um problema socioambiental. Atribui 1 para aqueles que tem essa pegada mais social e -1 para aqueles que teriam uma lógica mais de mercado. Então a somatória de todos esses fatores poderia variar de -10 a 10. Foi importante porque eu também queria testar essa régua. Se eu tivesse uma concentração de empreendimentos em determinado ponto da régua, ela não estava diferenciando.
P. – Como é tratado, na tese, o problema da geração de valor pelos vários tipos de empresas e organizações?
GC – Um segundo pilar importante nesse trabalho é a questão a geração de valor. Se usarmos um gráfico, os negócios sociais são quase uma posição equilibrada entre você ter geração de valor socioambiental e geração de valor econômico. As empresas tradicionais nascem para gerar valor econômico aos acionistas. Isso é clássico em administração. Mas, claro, elas vão sendo questionadas ao longo do tempo e a incorporação de práticas de responsabilidade social ou de sustentabilidade vai fazendo que elas entrem em um processo de mudança. Em termos de geração de valor, você não tem na bibliografia um único autor que sintetize e incorpore as dimensões sociais e ambientais. Então o meu objetivo nessa tese foi incorporar algumas dimensões, particularmente na parte de capital social. Você gera valor para a sociedade na medida em que você amplia seu capital. Que capital é esse? Não é só capital econômico, não é só possibilitar renda. Você tem outras formas de agregar valor para determinada população. Você pode ampliar o capital físico, por meio de melhorias do acesso a moradia, a bens duráveis; o capital produtivo, pelo acesso a bens de produção, a trabalho, a cadeias de valor. Você diminui os custos de transação, melhora o acesso a fontes de financiamento, capital humano, educação e serviços de saúde.
Outra contribuição da tese, algo que não foi trabalhado pela literatura, é um zoom nas questões ambientais, porque a gente nunca define claramente o que é gerar valor ambiental. Aqui eu abro em três categorias: Capital Natural, organizações que contribuem para a conservação da biodiversidade e serviços ecossistêmicos; organizações que contribuem para uma economia de baixo carbono, dando alternativas de fontes de energia renováveis, tecnologias limpas; e aquelas que contribuem com aquilo que hoje está sendo chamado de economia circular, isto é, usar menos os recursos. Ex.: reciclagem de materiais, gestão de resíduos sólidos.
Além de gerar valor de forma tangível, é possível gerar valor em fatores subjetivos: capital social, acesso à informação, inserção em redes de relacionamento, ampliar a noção de cidadania, a questão da identidade profissional, do conhecimento de direitos. São fatores importantes para identificar como os negócios socioambientais têm contribuído para gerar algum tipo de valor socioambiental. Pode ser um valor primário, ou seja, eu já crio o empreendimento para gerar aquele tipo de valor, ou secundário, quer dizer eu não tenho essa intencionalidade, eu não tenho um produto que diretamente contribua para aquele tipo de valor, mas indiretamente eu acabo gerando algum tipo de valor socioambiental ou aquilo que seria aquela intencionalidade positiva. Quando era um efeito primário, atribui 2 e, quando era secundário, 1, para dimensionar o tamanho da geração de valor.
P.- Como você aborda a questão da inovação social?
GC – O terceiro pilar da tese é a questão da inovação, termo bastante debatido em administração, associado à apresentação de um produto novo ou significativamente melhorado. E aí usei o Manual de Oslo, que faz uma classificação baseada nos tipos de inovação oferecidos, de produto ou serviço, de processo, mercadológica ou organizacional. A inovação social pode ser viabilizada por meio de um produto ou serviço, mas atinge objetivos sociais. É essa somatória, essa complexidade, que faz com que a gente tenha possibilidade de analisar essa temática pelos determinantes da inovação, fatores que facilitam a geração de inovação, ou pelos fatores que são os resultados da inovação, que foi a minha opção. Eu queria avaliar a capacidade de gerar valor e não como isso foi gerado. Procurei não só olhar a profundidade, abrangência e o tipo de inovação, mas também a finalidade. Juntar essas quatro dimensões foi o recorte que usei para analisar os dados dos empreendimentos.
Clique aqui para ler o resumo (abstract) da tese de livre-docência da professora Graziella M. Comini.